Texto – Sessão 3

Sessão 3 – O enfrentamento nunca foi escolha

Historicamente as imagens – na arte, na publicidade, etc – são pensadas e feitas para o olhar masculino. Com o cinema, isso não seria diferente. Por mais que haja hoje uma infinidade de filmes que fogem da linguagem clássica e de pessoas por trás das câmeras cada vez mais diversas, mesmo por esses grupos, os filmes são feitos para um espectador ideal e ele é homem, cis, branco. Não estou falando de público alvo, mas de uma forma de olhar. A linguagem clássica dos filmes americanos nos condiciona a, em troca do prazer visual que o cinema pode nos proporcionar, olhar para as imagens como se fôssemos todos homens cis brancos. Para ter a identificação é preciso sair do nosso lugar no mundo e pegar emprestado temporariamente esses olhos, essa forma específica de ver.

As imagens propostas por esse cinema violentam todos os tipos de corpos para proporcionar prazer. Quando falo de violência, não me refiro apenas às imagens literais de violência (física ou psicológica) ao qual esses corpos são submetidos, mas também a forma como se olha para essas pessoas. Como a câmera pode subjugar o outro só pelo enquadramento que se escolhe, o pedaço do take que fica na montagem, a voz que se tira ou se deixa.

Os filmes que compõem essa sessão se propõem, ao meu ver, não só a construir imagens para outros espectadores, como a desafiar o olhar do “espectador ideal”. As imagens não são construídas para que ele tenha prazer, elas são feitas para que ele tenha medo, para que se sinta desconfortável no lugar onde está.

Os três filmes se passam em lugares fora dos grandes centros. “Relatos tecnopobres” fala de uma sociedade inteira organizada que mora nos subterrâneos, em cavernas, etc; “Boca de loba” de um grupo de mulheres que circula em lugares também subterrâneos, acessados através dos bueiros da cidade de Fortaleza e “Antes da Encateria” vai se passar em uma cidade do interior do estado, distante da capital.

João Batista Silva mistura diversas formas de narrar para organizar seu mundo pós-apocalíptico em Relatos Tecnopobres” se utilizando assim da precariedade para construir uma ficção científica possível. Um falso documentário onde o entrevistado responde a perguntas de um entrevistador imaginário sobre a fatia da sociedade conhecida como Tecnopobres. Imagens de arquivo de foguetes e de manifestações no nosso mundo ajudam a compor a narrativa que ele fala. Além disso, ele só nos oferece imagens dos Tecnopobres. Aos detentores do capital, a cyberburguesia, que nem mora mais na terra, tem uma sociedade organizada na Lua, é negada o direito à imagem. Isso por si só já é muito interessante por colocar corpos dissidentes no centro de uma narrativa onde os corpos ditos hegemônicos nem aparecem. Chamaria atenção também para o fato de uma organização revolucionária de resistência ser colocada aqui como os mocinhos, os heróis. É uma torção na usual representação dos movimentos revolucionários, principalmente os movimentos armados, no cinema.

Um outro tipo de torção na forma hegemônica de representar pode ser vista na forma como Bárbara Cabeça olha para os corpos das mulheres em Boca de Loba. O filme tem uma ausência total de homens cis em tela, sendo representados em um momento só através de bustos de estátuas na cidade. Ou seja, figuras imóveis, objetos incapazes de revidar a tentativa de uma das personagens em amarrar uma corda em volta de seus pescoços e arrancá-las do pedestal. As imagens das mulheres que compõem esse bando são diversas e não-objetificantes. Elas não são construídas para o prazer do olhar do “espectador ideal”. Mesmo os momentos de nudez são construídos para que olhemos para elas com todas as suas camadas e subjetividades e não corpos filmados para despertar o desejo do olhar masculino a cada plano.

Em “Antes da encateria”, também poderemos ver uma mistura de formas de narrar onde temos de um momento inicial no qual a narração conta uma fábula cheia de detalhes que não são representadas nas imagens que a acompanham, depois imagens das personagens transformadas em gigantes que atacam a pequena cidade interiorana, passando por registros documentais de uma festa e chegando num momento performático que é quase um videoclipe. O filme é feito a partir dos trabalhos do coletivo Chá das cinco, coletivo de artistas baseados em Icó. A forma que Elena Meirelles, Gabriela Pessoa, Jorge Polo, Lívia de Paiva e Paulo Vitor Soares, encontram para transformar em cinema esses trabalhos é a fantasia porque só assim a essência das obras poderia encontrar sua versão fílmica. Mesmo as imagens documentais tem algo de mágico que atravessa o curta todo.

Assim como na sessão 2, os filmes dessa sessão inventam uma linguagem, um lugar próprio para que essas narrativas, essas personagens possam existir. Aqui num tom de enfrentamento. Nos três filmes temos planos construídos imageticamente para confrontar esse “espectador ideal” do qual venho falando. Em “Boca de loba”, um plano com todas as personagens reunidas em frente à câmera. Um quadro todo preenchido de rostos femininos cobertos de máscaras ameaçadoras encarando seu inimigo. Em “Antes da Encateria”, uma das últimas imagens que temos são dos artistas/personagens vestindo telas como se fossem capas e, em seguida, um take de cada um/a/e tirando uma máscara ou capacete e revelando o rosto pintado para guerra enquanto encaram a câmera. Em “Relatos Tecnopobres”, o personagem narrador que fica sentado bem de frente para nós durante todo o filme diz ao final: “É uma guerra, né? O povo tecnopobre nem tem escolha se luta ou não. A gente já nasce no front. Mas o dia da grande retomada tá chegando. Você banqueiro. Você grande industrial. Você grande latifundiário. Vai sentir o peso da chibata tecnopobre porque o exército de libertação tecnopobre vai tomar de volta tudo o que é nosso. Nossa riqueza, nossa terra, nossa liberdade e o nosso direito de viver.”

De fato, nós não temos escolha pois nascemos já no front e o único caminho que existe é o enfrentamento.

 

Por Grenda Costa.