Curadoria

UTOPIA PERTENCE A NÓS : O CINEMA DO MUNDO VINDOURO

Os seres humanos têm sonhos diurnos e uma parte desses sonhos estimula o ser humano a não se conformar com o que aí está, e a não se permitir a submissão ao insuficiente e ao escasso. A existência humana traz inquietações do espírito que colocam o ser humano em efervescência utópica.

– Ernst Bloch.

O ano de 2020 foi sem dúvidas um desafio de reinvenção individual e coletiva para todos nós. O cinema é, quase sempre, um espaço de expressão dos anseios e desejos de seu tempo, daquilo que somos e daquilo que poderíamos ser. Em meio a catástrofe climática, mais de um milhão de mortos pela pandemia, ruas em ebulição clamando pelo fim do genocídio contra a população negra, somos chamados a refletir, em que mundo queremos viver? É urgente construirmos o caminho para esse mundo e acreditamos que a arte pode e deve ser um campo de batalha nessa luta.

Essa curadoria é um convite para lutarmos juntos.

A palavra utopia vem do grego topos, lugar, acrescido o prefixo de negação u significando literalmente não lugar. O livro de Thomas More denominado Utopia(1516), narrando uma sociedade ideal, popularizou o termo como sinônimo de um sonho de perfeição, portanto, inalcançável. Existem, no entanto, interpretações de autores como Walter Benjamin e Ernst Bloch, que apontam a utopia como imaginação de um mundo vindouro a ser construído.

Partindo da interpretação de Bloch, a presente curadoria busca refletir sobre as possibilidades de efervescência utópica.

Pudesse ser apenas um enigma, de Jéssica Teixeira e Pedro Henrique, abre a mostra trazendo em suas experimentações estéticas, do encontro entre teatro e cinema bem como do uso da acessibilidade como narrativa. O filme nos traz possibilidades para um mundo e um cinema que sejam de fato para todos. Alguns filmes, como Boca de Loba, de Bárbara Cabeça, trabalham uma postura de enfrentamento da opressão social a partir da construção de espaços oníricos e seguros para as protagonistas. A sororidade apresenta-se como aspecto de união entre as personagens e fio condutor deste “lugar construído”. Já filmes como Cartuchos de Super Nitendo em Anéis de Saturno, de Leon Reis, e Guerreiros da Rua, de Erickson Marinho, são exemplos que aludem a elementos da cultura pop, como jogos de videogame e histórias em quadrinhos, para criar o universo imaginado e encantado onde o enfrentamento das opressões e traumas, pode se dar. Antes da Encanteria, de Jorge Polo, Lívia de Paiva, Paulo Victor Soares, Elena Meirelles e Gabriela Pessoa, trabalha a computação gráfica em tons de neon, elemento futurista, sobre imagens de uma cidade colonial, abrindo um canal entre o passado e o futuro e tensionando as relações com aquele espaço. A negritude e a viadagem interplanetárias em Negrum3, de Rodrigo Paulino, expõe corpos marginalizados em situações de ousada e inspiradora liberdade que explode em ancestral ficção científica. Relatos Tecnopobres, de João Batista Silva, recorre à narrativa do futuro distópico para tratar das graves ameaças a nosso futuro apresentadas pelo presente. O elemento da revolução no filme nos remete à possibilidade da esperança. Sample, de Ana Júlia Travia , Br3, de Bruno Ribeiro e Filme de Domingo, de Lincoln Péricles, são narrativas que versam sobre a existência cotidiana dos corpos que são atualmente ameaçados e marginalizados, suas sutilezas e seus afetos. Quintal, de André Novais, como que em uma síntese de todas estas abordagens, trabalha o cotidiano de um casal idoso e periférico, os pais do diretor, em suas possibilidades de contato com o realismo mágico. O quintal de casa apresenta um portal para outros mundos possíveis em cocriação com o espectador.

Perguntados em uma palestra para que serve a Utopia, Eduardo Galeano e Fernando Birri viram-se na retórica diante do dilema que vivemos na prática. Galeano comenta a resposta do colega, que a utopia está no horizonte e nunca a alcançaremos, mas olhando para ela não deixamos de caminhar. Diante da tragédia, um sentimento de paralisia assola a muitos de nós, é comum ouvirmos que não há possibilidade de caminhar ou para onde ir. Para além da fruição estética, importante em qualquer tempo mas fundamental nos tempos atuais, nossa intenção é exibir ao público obras que contribuam com o que acreditamos ser o debate do século: para onde iremos a partir daqui? Que mundo somos capazes de imaginar e construir? Como podemos continuar a caminhar?