Sessão de Abertura – Decomposição como método de criação
“Pudesse Ser Apenas Um Enigma” nasce – antes mesmo do convite para a produção do documentário ou mesmo antes da peça que é base para o filme – quando Jéssica Teixeira nasce. Atriz, pesquisadora, produtora e diretora, a artista lançou há cerca de dois anos o espetáculo “E.L.A.”, baseado nas próprias experiências que dividia com ele – seu corpo. “Pudesse Ser Apenas Um Enigma” decompõe ele, ela e “E.L.A.” para, daí, lançar-se num gesto de criação que tensiona e retorce moldes e modelos ditos estruturantes.
O convite que antecede a criação do filme propôs à Jéssica a desmontagem do espetáculo criado por ela em parceria com diversos outros artistas das artes cênicas do Ceará – do diretor Diego Landim ao figurinista Yuri Yamamoto, para citar poucos. O documentário surgiu, então, num contexto em que as atividades artísticas que tinham no encontro presencial a essência de ser viram-se na necessidade de adequação aos imperativos do vírus.
A mediação do contato por telas virou regra, mas foi tensionada por diversas iniciativas artísticas. “Pudesse Ser Apenas Um Enigma” é um exemplo especial neste sentido, não somente por não ser, em si, uma transposição do espetáculo teatral para a linguagem audiovisual, mas pelo potencial de criação que encontra no formato. O convite foi para desmontar o espetáculo. No entanto, os gestos empreendidos pela dupla criadora, aqui, desmontam aspectos do próprio audiovisual, jogando com a centralidade de elementos ora escanteados.
A acessibilidade, aqui, é ferramenta de experimentação visual e narrativa. Se a caixa de Libras geralmente fica relegada à ponta direita da tela, aqui a intérprete Ariel Volkova é repetidas vezes trazida ao centro do plano. Se a audiodescrição é uma experiência geralmente reservada às pessoas que precisam do método, aqui a audiodescrição vira elemento narrativo essencial, presente do começo ao fim como elemento de acessibilidade e, também, experimentação.
Junto dessas proposições que se lançam ao risco de novas criações, “Pudesse Ser Apenas Um Enigma” também caminha por diferentes formas de narrar, equilibrando junto das passagens mais atmosféricas, sensoriais e performativas, uma série de trechos mais tradicionalmente construídos, em depoimentos de Jéssica em estilo “talking head” – ou seja, um plano mais televisivo, que foca na cabeça e na parte de cima do corpo e que apresenta a artista falando diretamente ao público.
Esse modelo mais clássico na forma, porém, não diminui de maneira alguma a audácia dos discursos proferidos pela artista-criadora, que agrega a eles série de pensamentos, conceitos e textos de mentes como o filósofo espanhol Paul B. Preciado e a professora de literatura brasileira Eliane Robert Moraes, acumulando ideias que também desafiam limites e preceitos pretensamente vistos como “definidos”.
Entre reflexões sobre limites, materialidades, decomposição de corpo, reflexão de si, ausências, colagens e o equilíbrio entre a singularidade e a universalidade de questões, a artista encontra potência na desestruturação de moldes. “Dentro da degeneração há uma força criadora, uma mola propulsora por transformação – e inclusive por vida – que me interessa bastante”, atesta Jéssica. O convite é pela força construtora da destruição.