Texto – Sessão 4

Sessão 4 – Sonhar pode ser (r)exististência

Eu cresci em Quixadá, interior do estado do Ceará, durante os anos 90, assistindo animes e desenhos animados logo após chegar da escola e jogando videogame nas locadoras quando juntava dinheiro suficiente dos trocos de compras na bodega da esquina. Os filmes dessa sessão me transportam exatamente para esse período. A identificação é instantânea. Eu vivia enfrentando monstros 2D em jogos de super Nintendo. Eu também desenhava super-heróis e criava narrativas elaboradas onde era tanto o herói quanto a mocinha que seria salva. Guardava os desenhos e sonhava em um dia criar histórias como aquelas que assistia e me faziam sentir que tudo era possível.

E então para o cinema tudo é possível? Os dois filmes que compõem essa sessão vêm nos dizer que sim. A precariedade pode ser a mais inventiva das armas, basta você saber usar. Não com isso defendendo que nossos filmes sempre devam contar com o fator precariedade, mas atentando para como são interessantes os filmes que sabem jogar com ela. Como essa criança que fui, ao ver os garotos em “Guerreiros da rua” transformando um cano de sanitário em um arco mágico, lembro de como a gente fazia beyblades de tampa de detergente e catraca de bicicleta e como elas eram melhores que as compradas em lojas de brinquedo. Esse filme só é capaz de nos evocar essas imagens por causa de sua gênese na precariedade. Quem poderia imaginar que monstros 2D animados da forma mais simples possível poderiam lutar contra quatro meninos atores não profissionais e ser envolvente dessa forma?

Erickson Marinho, que estava envolvido em quase todos os processos do filme quando vemos os créditos com atenção, sabe utilizar os recursos que tem e cria uma linguagem para o seu média que funciona muito bem. Você nem vê os 40 minutos de duração passando e ainda fica querendo mais. O mundo que ele cria junto de seus atores-mirins se ergue completo diante de nossos olhos porque parece mesmo ter saído da imaginação de uma criança. E como um bom filme infantil, ele constrói metáforas poderosas a partir de situações aparentemente cotidianas que acontecem com crianças. Como por exemplo o apagamento da memória coletiva, o silenciamento de povos marginalizados, colocado no filme através da ameaça de Voarag, o monstro, que tem por objetivo não só destruir os guerreiros da rua, mas fazer com que ninguém nunca mais saiba da existência deles. Ao que os garotos respondem que eles têm uma pasta onde todas as aventuras foram registradas – fazendo alusão à história escrita – e, além disso, que enquanto existir um guerreiro da rua, a história deles jamais poderá ser apagada – fazendo alusão assim a história oral passada de uma geração para a próxima. Logo em seguida a essa fala, um novo guerreiro da rua surge, um garoto mais novo, o futuro.

Já “Cartuchos de super nintendo em anéis de saturno” vai se utilizar de metáforas que jogam menos com a inocência e são de certa forma mais diretas. A cidade de Fortaleza, que é dividida em Regionais na realidade, é dividida em zonas no mundo/jogo de videogame criado por Leon Reis. As regras do jogo não são dadas para nós espectadores, bem como não são dadas para nosso protagonista e que também são um mistério para os garotos pretos da idade dele que transitam pela cidade agora mesmo. Por causa disso, ele é pego por uma entidade que poderia ser a polícia na nossa realidade ou qualquer outra figura de repressão branca. Poderia ser o guardinha da rua que passa de moto ou mesmo o segurança armado de um prédio.  Em sua prisão, o garoto é obrigado, assim como provavelmente todos os estudantes de cinema do mundo, a assistir “O nascimento de uma nação”, o primeiro longa-metragem já feito na história do cinema, um dos fundantes da linguagem cinematográfica e também um filme que fala do surgimento da Ku Klux Klan, a exaltando como a salvadora dos estados do Norte dos Estados Unidos, a grande heroína da história. Ainda hoje, esse filme onde atores brancos com seus rostos pintados de preto para interpretar caricaturas de personagens negros é projetado nos cursos de cinema como item obrigatório.

Outras situações de violência são encenadas nessa prisão e a única forma de escapar é jogando um jogo em um Super Nintendo. A única maneira de salvação é o uso da imaginação. Vestir temporariamente as armaduras de um personagem fictício que aceita os comandos de qualquer um que saiba segurar o joystick e tenha capacidade de abstração suficiente para se permitir trilhar a jornada que o jogo propõe.

Como num jogo de videogame que só acaba quando nosso herói é bem sucedido ou numa história de super-herói inventada por nós mesmos que só pode terminar num final feliz, os heróis de ambos os filmes completam suas missões. Eles derrotam monstros, fazem as pazes consigo mesmos e criam com seus filmes lugares de (r)existência dentro do cinema.

 

Por Grenda Costa.