Sessão 1 – Celebração e reinvenção
“Na minha pele preta, tão escura quanto a noite, carrego a história de gerações. Da minha e das passadas. Carrego as vozes daqueles que vieram antes de mim e resisto hoje em nome daqueles que virão depois.”
Uso das palavras ditas por uma das personagens do filme “NEGRUM3” de Diego Paulino, curta que finaliza essa sessão, para iniciar esse texto pois acho que elas resumem bem sobre o que ela fala, o sentimento que fica depois de vê-los juntos, sobre o que, para mim, é a vontade de cada realizador/a com esses filmes. A celebração da existência preta, em todas as suas nuances, uma existência complexa que abrange vários aspectos; que tem a violência no seu cotidiano, mas não se resume a isso, que pode ter espaço para o amor, o afeto, para a alegria, para a (auto)celebração. Uma existência que articula a ancestralidade com o desejo de futuro.
A ancestralidade impregnada no hoje das personagens enquanto matéria fílmica está muito presente em “Sample” de Ana Júlia Travia. Enquanto seus protagonistas se conhecem – ou já se conheceram – suas conversas sobre a história escondida de lugares conhecidos da cidade de São Paulo, como a história do bairro da Liberdade ou o surgimento do MNU na escadaria do Theatro Muncipal, preenchem todo o filme através de voz off. O cotidiano de dois jovens que só querem sobreviver ao dia extenuante de trabalho e talvez encontrar um pouco de afeto é impregnado do passado contido em suas vozes. A cidade, bem como nossos corpos, está repleta de história, como diz a personagem de “NEGRUM3”, a história de nossos ancestrais e daqueles que virão depois de nós.
O jogo de temporalidades que Ana Júlia Travia propõe vai contra a forma branca e clássica cinematográfica de organizar o tempo. A temporalidade em Sample é uma que se aproxima mais daquela proposta por povos asiáticos, africanos e por povos originários da América. Ela traz uma ideia de tempo circular e simultâneo. Ao mesmo tempo que vemos seus protagonistas a caminho de seu primeiro encontro, já sabemos desde o início do filme que eles já se conheceram, que eles já estão aprofundando essa relação, que suas conversas durante o horário de almoço passeando pela cidade é o que preenche a banda sonora do filme.
Essa temporalidade também será trazida no filme de Diego Paulino, que vai extrapolar ainda mais esse jogo de temporalidade. Além do presente que vemos, existe o passado evocado nas falas, principalmente, de Eric, ainda existe o futuro. Um futuro desejado e existente, um futuro no espaço. Fugindo também da lógica hegemônica de construção da linguagem cinematográfica, Diego Paulino traz uma miscelânia de vários estilos e formas para dentro de “NEGRUM3”: performance, documentário clássico, documentário observacional, videoclipe, entrevistas, manifesto, etc. Só assim se pode dar conta de falar da complexidade da existência preta e celebrá-la em todas as suas formas.
A mistura de diferentes linguagens também é o que vai fazer “BR3” ser capaz de existir. Diferente de “NEGRUM3” que já é escancaradamente uma combinação de linguagens, o filme de Bruno Ribeiro começa como uma ficção clássica. Nossa primeira personagem, uma mulher trans preta, chega a uma casa e se acomoda. Naquele momento, o filme tem um clima pesado e um ritmo lento, parece que veremos mais uma história da vida difícil de uma mulher trans que é obrigada a se prostituir porque foi abandonada pela família e seu caminho vai ser repleto de tristeza e violência. Porém esse primeiro ato tem uma reviravolta quando ela diz para a mulher que é dona da casa que aquela não será a sua vida por muito tempo e começa a tocar “Crazy in love” da Beyoncé transformando a cena em um videoclipe, no qual a protagonista canta e performa a música e os transeuntes dançam. As próximas duas histórias também vão jogar com a mistura de linguagens, mas essa quebra já seria o suficiente para nos dar o tom do filme.
Os três curtas fazem essa combinação de linguagens para, assim, criar uma forma e um lugar onde se possa celebrar a negritude. Só com a reinvenção da linguagem cinematográfica é possível apreender essas personagens, esses corpos. A violência, como eu disse, está presente nos três filmes, ela é citada de alguma forma, porque não pode ser ignorada quando se fala de corpos pretos, mas ela não é o centro das narrativas. O que viemos ver aqui são casais pretos de vários tamanhos e gêneros se beijando em uma festa no Centro de São Paulo no fim de “Sample”, uma edição da Batekoo onde vemos todo tipo de gente preta sorrindo, se abraçando, dançando em “NEGRUM3”, um casal de duas pessoas trans se amando e indo até a janela ver as crianças jogarem bola em uma tarde qualquer no final de “BR3”. Nós viemos criar um espaço de existência e celebração.
Por Grenda Costa.